terça-feira, 15 de junho de 2010

O Sonho Do Carreteiro

O Sonho Do Carreteiro

Luiz Menezes

Carreteou anos a fio.
Conhecia palmo a palmo
as estradas da querência;
Sabia onde dava passo
- no tempo das enxurradas -
aquele arroio sotreta
cemitério de carreta
disfarçado em água mansa
Vira nascer muitos ranchos
nesse corredor sem fim.
Sabia que na picada
logo depois do lagoão,
o umbu do enforcado
dera lenda prás estórias
dos bolichos, das ramadas.
Sabia bem todo o causo
da tapera do repecho:
A maula traíra o guasca
e este sem dó nem piedade,
cortara junta por junta
o belo corpo moreno
daquela indiazinha louca
que se engraçara num piá ...
Mas além, no Passo-feio
vira morrer um tal Juca.
Eram três contra o rapaz.
E como morrerra lindo
aquele guasca sem medo ...
A estória ficou em segredo
pois diz que o tal de mandante
era mui relacionado,
e até contraparente
de um graudaço do povo.
Conhecia palmo a palmo
as estradas da querência,
sempre fora carreteiro.
Envelhecera na lida
sem conhecer outra vida
sem ter outra ocupação.
Tinha por seu ganha-pão
a velha carreta amiga
companheira de cantiga
daquele piazinho vivo
que era, alegria e motivo
de seu final de existência.
Pois ficaram bem solitos
mais amigos do que antes
des’que a finada se fora ...
Por isso sempre de noite
a meia luz do candieiro
ficava horas inteiras
mostrando prá seu piazinho
as letras do ABC.
E o piá com muita memória
decorava uma por uma
as letras que galopeava,
ou por outra, engarupava
nas palavras do jornal.
Como era esperto o guri:
Foi duas, três paletadas
já sabia mais que o pai ...
E foi numa dessas noites
que o velho e bom carreteiro
teve um sonho de repente.
E quase num gesto louco
gritou prás quatro paredes
enfumaçadas do rancho:
Meu filho há de ser doutor!
Não há de ser carreteiro,
pois estas mãos calejadas
do peso-bruto, da enxada,
hão de sangrar no trabalho
prá que este piazinho feio
viva melhor do que eu ...
Pura e santa ingenuidade!
O arroio-sociedade
prá o pobre nunca dá vau!
No outro dia cedinho
enveredou para o povo ...
Voltava a velha carreta
A resmungar nas estradas
na viajada da esperança
carregadinha de sonhos.
E o pobre e bom carreteiro
ia falando de tudo
com seu piazinho faceiro
dentro da bombacha nova.
Não esquecia de nada
nos seus conselhos de pai:
Se lá no povo à tardinha
o piá sentisse saudade,
bombeasse prá o horizonte,
que alguém solito decerto
meio tristonho é verdade,
mateando assim com saudade
estaria a lhe esperar ...
Que importa se demorasse,
pois nunca ouvira dizer
que a tal saudade matasse.
Mas nesse dia por certo
Quando voltasse doutor
tudo havia de mudar.
Até o céu com certeza
morada das almas puras
ouviria com ternura
uma indiazinha chorar.
E as estradas da querência
que conhecia demais,
lhe viram passar feliz
com novo brilho no olhar.
Mas lá no povo - cuê-puxa! -
Bateu em todas as portas
clamou por todos os santos
recorreu todos os amigos
- muitos dos quais ajudara -
andou quase mendigando,
Prá dar escola pra o filho
mas ninguém quis lhe escutar ...
E a esperança foi mermando
foi mermando ... e se apagou.
Botou a carreta na estrada
o Piazinho dentro dela
tocou de volta outra vez.
A noite então já chegara.
Naquela enrugada cara
de gigante das estradas
uma lágrima teimosa
veio molhar-lhe o nariz ...
Olhou o filho com carinho,
mas com muito mais carinho
Com mais amor do que antes
e uma queixa derramou:
Quem nasce lutando busca
a morte por liberdade!
Mentira! A tal de igualdade
não existe por aqui ...
Que adianta se amar aos outros
se os outros não dão amor?
Pega a picana, piazinho
e acorda esse boi manheiro,
pois filho de carreteiro
nunca pode ser doutor!

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