terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A Revolução Libertária Sulista

A Revolução Libertária Sulista

07 de outubro de 2007

Por Celso Deucher*

Nos mais de 15 anos de luta do Movimento O Sul é o Meu País, temos enfrentado discussões e debates acirrados em torno dos direitos reivindicados pelo Povo Sul-Brasileiro para sua libertação. Nestes momentos, uma série de argumentos servem de munição para os defensores do status quo reinante. Um dos principais é de que “não é possível, dentro da legalidade, transformar o Sul em um País”, ou, sendo mais claro, há uma impossibilidade legal para a criação do estado nacional Sul-Brasileiro.

Por se tratar de um argumento que necessita de uma analise mais apurada, decidimos introduzir nas discussões as principais teses da teoria jurídica da revolução, as quais, acreditamos, mais se encaixam nessa argumentação. É sabido que o triunfo duma revolução traduz-se na ruptura da ordem jurídica interna e na instalação de uma nova legitimidade. Conservadores por necessidade, os juristas têm-lhe certa aversão. Os juristas brasileiros, mais ainda, pois são capazes de temer pela sua sobrevivência por um simples balanço no arcaico sistema de leis que amordaçam e engessam a América Portuguesa.

Porém não são apenas os juristas brasileiros que sofriam e em muitos casos ainda sofrem deste mal. No nível internacional, não muito tempo atrás, existia uma espécie de anátema absoluto contra qualquer perspectiva jurídica da revolução e, quando muito, a revolução era vista como simples momento de transição, sem valoração jurídica, entre o precedente e o novo direito vigente. Assim, vale uma visita nas primeiras tentativas de teorizar juridicamente a revolução.

Uma, considerada “clássica”, pertence a Georges Burdeau, que acreditava que uma revolução é “a substituição de uma idéia de direito por outra, enquanto princípio motor da atividade social”. Neste caso, sendo, no plano histórico, um fenômeno de força, a revolução Sulista, sob o ponto de vista jurídico, traduz uma tentativa do direito de penetrar na vida social. Tal penetração originaria o estabelecimento de uma ordem jurídica nova. A validade desta não é um efeito do triunfo revolucionário que transformaria o fato em direito, mas antes de mais nada, se funda numa mudança da idéia de direito dominante.

A revolução Sulista, neste sentido, deixaria, então, de ser mero fato e passaria a fenômeno jurídico, visto que a superação de certa concepção do mundo e de certa ordem jurídica e conseqüente cristalização das novas aspirações de povo numa doutrina que o seduz, encarnada numa gama de lideranças libertárias que com habilidade e empreendedorismo não exprime, apenas, a introdução temporária da força do direito na vida política, e sim, “um direito novo que se afirma como fundamento da validade da ordem jurídica futura”, pelo que “a revolução não é uma ruptura do direito, é uma transformação deste mesmo direito”.

Chega-se, portanto, à observação de uma prodigiosa fecundidade, qual seja a de que todo o direito tende a incluir uma força revolucionária. Este aparente paradoxo significa ter-se tomado consciência que “podendo ser a revolução um instrumento do direito, por seu lado, o direito podia ser um instrumento da revolução, que justificaria a conquista do poder político e que, em definitivo, a democracia seria, precisamente, permitir a revolução através do direito”.

O nosso autor, Burdeau, é partidário da formação do Estado no gênero comum dos “governos de fato”, não lhe concedendo tratamento autônomo. Ele considera a existência de um “governo de fato” não subordinada a qualquer doutrina de legitimidade política e a sua qualificação dependente exclusivamente das circunstâncias, traduzindo-se numa dupla constatação. A primeira, de que não tem qualquer fundamento constitucional e a segunda, de que se trata efetivamente de um governo.

Bem mais recente, surgiram significativos estudos sobre a teorização jurídica da revolução, especialmente no pensamento kelseniano. Nela, diversas questões de uma mesma situação são esmiuçadas, surgindo o que muitos chamam de “teoria pura da revolução”. Para esta visão, trata-se de toda a modificação ilegítima da constituição. É a alteração constitucional transcendente da constituição, isto é, a alteração da constituição sem serem observados os trâmites por ela mesma estabelecidos, envolvendo necessariamente quebra da continuidade jurídica e instauração de uma nova ordem. Resta saber, indo mais a fundo na questão, se à idéia de ruptura corresponde a qualquer conceito jurídico específico de revolução.

Como não é possível retirar normatividade da pura faticidade, a conceitualização jurídica da revolução, só pode assentar na pressuposição da norma fundamental e é indiscutível que a formação de um novo Estado Nacional firma-se num processo de vontade, que se torna na decisão ou (novo) “fato fundamental” como ponto de partida da (nova) estrutura constitucional do poder. Ou seja, em termos de teoria kelseniana, é o fato fundamental a que corresponde a norma fundamental (Grundfaktum - Grundnorm). Não é a norma fundamental que produz ou trás ao nível da existência, o fato fundamental. Ao contrário, dado o fato fundamental, para colhê-lo em termos de conhecimento dogmático, pressupõe-se a hipótese normativa básica que tem o fato fundamental por conteúdo”.

Considerando o caso que nos interessa, da formação do Estado Nacional Sul-Brasileiro “a revolução entra na categoria de fato fundamental, de decisão política proveniente de uma coletividade que tomou em suas mãos a opção de ser de uma determinada forma. Essa decisão é prévia a toda normatividade. Pode ocorrer ora dentro de um Estado já constituído (exemplo: a revolução francesa de 89) ou antes de um Estado a constituir-se (exemplo: o movimento de independência política das treze colônias inglesas). Constituído ou a constituir-se, o Estado ante a revolução está ante o poder constituinte.

A revolução é, deste modo, fonte material, sociológica, pré-constitucional, que vem instaurar uma constituição onde ela não existia (ou substituí-la por uma nova). Sendo um fato não legitimado por norma prévia é, todavia, fato produtor de normas, o que significa que “o titular do poder constituinte é uma fonte extra-dogmática”. Por outras palavras, “a revolução é pura faticidade, se tomarmos o jurídico-estatal como critério ou esquema de referência” e a sua juridicização faz-se mediante “recurso à norma fundamental hipotética do ordenamento estatal, ou recorrendo ao nível mais alto da norma de direito positivo internacional”.

A questão é, então, no nosso caso, indagar se o processo de independência da União Sul-Brasileira corresponde a esta elaboração formal e lógica sobre a natureza jurídica da formação do Estado e se não permite até, dado os seus traços específicos, mitigar a dicotomia (ou questão da prevalência) entre direito interno e direito internacional e compreender como o direito à autodeterminação, além de fundamentar juridicamente a independência, tem importantes reflexos nos tradicionais requisitos da formação do Estado. Ou, diretamente quanto ao “peso específico” do princípio da efetividade.

Feito estes esclarecimentos, resta-nos olhar mais atentamente sobre os pressupostos formadores do Estado em direito internacional. Apesar das alterações que a descolonização implicou, a doutrina do direito internacional negligenciou o estudo da condição jurídica dos novos Estados, provavelmente pela complexidade e multiplicidade de casos “cuja tradição histórica, estrutura social e política e organização jurídica anteriores à independência são diferentes”. Não obstante, há uma evolução nas concepções sobre a formação do Estado e a descolonização representa um momento de crise e ruptura das posições tradicionais.

O Estado, em direito internacional é, fundamentalmente, um produto da própria ordem jurídica internacional, pelo que a sua noção acompanha as evoluções do direito, sendo “dotada de uma plasticidade que lhe permite absorver as evoluções, por vezes consideráveis, que afetam o fenômeno estadual”.

Consultando outro grande pensador, no princípio do século XX, numa obra clássica, L. Oppenheimer escrevia sem dúvidas nem divergências: “A formação de um novo Estado é (...) uma questão de fato e não de direito. O novo Estado transforma-se em sujeito de direito internacional em virtude do reconhecimento, que é uma questão de direito. Logo que o reconhecimento seja outorgado, o território do novo Estado fica reconhecido como território de um sujeito de direito internacional, e não importa o modo como esse território foi adquirido antes do reconhecimento”.

Assim, na segunda metade do século, a questão, centrada no reconhecimento e sua natureza jurídica, coloca-se já em termos relativamente diferentes, embora, numa primeira fase, a descolonização não detenha relevância ou autonomia. Apesar de se manter o entendimento de que a formação do Estado é matéria de fato, predomina na doutrina a defesa da existência de normas de direito internacional atributivas da personalidade e, portanto, da natureza meramente declarativa do reconhecimento de Estado. Um dos principais autores que analisa este mesmo assunto é Arangio-Ruiz por abordar a natureza da formação do Estado a partir de uma colônia, numa época em que o direito à autodeterminação não detinha autonomia. Também para ele, o Estado só é legitimável pelo seu direito interno e “o Estado em direito internacional não é instituição ou pessoa jurídica no sentido do Estado em direito interno. É pessoa real, um ente dado. Os Estados constituem, logo de seguida, no seu conjunto, a base social do direito internacional. Isto é, os Estados são pressupostos do direito internacional tal como os seres humanos são pressupostos do direito interno”.

Analisando à descolonização, o autor considera que as normas dos tratados do século XIX (sobre a ocupação dos territórios coloniais) e do sistema da Sociedade das Nações e da ONU (sobre administração dos territórios dependentes e sua preparação para a independência) não admitem conclusões diferentes. Essas normas e princípios, mesmo tendo fins humanitários, limitam-se a regular a conduta dos Estados perante povos e territórios dependentes, os quais continuam a ser objeto dos direitos-obrigações daqueles Estados. Logo, só nesse (pouco significativo e alheio) sentido é “regulado pelo direito internacional o acesso à independência dos povos coloniais. Para o direito internacional, a formação de novos Estados nos territórios coloniais continua a ser processo de fato, isto é, os novos paises constituem-se sempre fora de um contexto jurídico inter-individual e como formações históricas não condicionadas, antes e depois do nascimento, por normas internacionais, direta ou indiretamente dirigidas ao ente”.

Pelo sim, pelo não, quando das conclusões de Oppenheimer existiam cerca de 50 países independentes. Já quando da II Guerra Mundial a sociedade internacional, embora composta por setenta e cinco Estados, continuava a ser uma comunidade fechada dirigida pelo “clube europeu”.

A descolonização, desta forma, veio aumentar para cerca de 150 países, alterando profundamente o mapa mundi e gerando uma demanda por liberdade nunca vista na história da humanidade. Naquele momento, foi inevitável a desintegração do sistema colonial e a formulação, no decurso dos anos sessenta, de um direito internacional que repercutisse nas próprias concepções sobre a natureza da formação do Estado. Hoje, em vista da “grande” evolução dos sistemas democráticos, já temos mais de 200 países, nascendo cerca de três novos por ano. Esta realidade de fato, também vem desmentindo as posições conservadoras de que o mundo está se unindo e não separando-se. Se depender dos movimentos de libertação nacional (hoje em torno de 450 em todo o planeta), nos próximos 50 anos, teremos cerca de 300 países no mundo. Afinal, é hora destes povos usufruírem de democracia, pelo menos no que diz respeito a sua diversidade e sua pluralidade.

Para nós, Sul-Brasileiros, em pleno ano de 2007, novas demandas estão sendo gestadas no seio desta diversidade humana sedenta por justiça, liberdade e autodeterminação. Sabemos que ainda há divergências sobre o estatuto da autodeterminação a nível internacional, não havendo ainda consenso na doutrina sobre a formação do Estado. Porém, resta-nos a certeza de que agindo dentro dos princípios da Carta de Direitos Humanos, portanto sob o ditames da legalidade coletiva que ampara todos os seres, é possível sim, lutar pelo estabelecimento de um Estado Nacional Sul-Brasileiro, sem que para isso, seja necessário recorrer ao uso de práticas que não sejam democráticas e de respeito a vontade coletiva de nosso povo e aos demais povos da América Portuguesa.

(*) CELSO DORVALINO DEUCHER é professor e jornalista, secretário-geral do Grupo de Estudos Sul Livre (GESUL) e presidente do Movimento O Sul é o Meu País.

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